Não é só inflação. Uma mentalidade elitista está transformando as Histórias em Quadrinhos em artigo de luxo no Brasil.
A grana lá em casa sempre foi curta, mas nunca faltava para alguns livros e quadrinhos. Meu pai não sabia ler. Certamente por isso era tão importante para ele que seus filhos lessem tudo que pudessem. Já com a minha mãe, eu tinha um acordo não verbalizado, mas inviolável: o troco do pão era meu. Quase todo dia, eu ia à padaria, munido de vários milhares (talvez milhões) de seja lá qual fosse o dinheiro da época, com o único intuito de juntar uns trocados ao FCGS (Fundo pra Comprar os Gibis da Semana). Ah, e tinha que comprar o pão também.
Fico pensando nas crianças de hoje com pretensões de comprar gibis com um fundo à base de troco de pão.
Para falar só de quadrinhos de super-heróis (cultura pop na sua essência), uma edição mensal não sai por menos de R$ 20. Haja viagens à padaria para o pimpolho que quiser acompanhar minimamente a Marvel ou a DC em um país onde mais da metade da população vive com menos de R$ 15 por dia.
É curioso notar que os mesmos caras que se apaixonaram por essa mídia na infância, estão roubando-a das crianças. Talvez em busca de uma respeitabilidade que não encontrava no passado, o público adulto abraçou – com algum esperneio, é verdade – a estratégia das editoras de quadrinhos e segue consumindo edições cada vez mais luxuosas, com capas cada vez mais duras e papel couché que chega ofusca. Aquele material rico, mágico, que você sempre amou tanto e os outros tratavam como lixo está finalmente recebendo o devido valor. O que antes era entretenimento descartável, ganha um verniz de coisa séria, um status de peça de coleção. Aí, em troca daquela estante de responsa, com HQs (mesmo as mais banais, nem estamos falando dos clássicos) que chegam a custar ⅓ de salário mínimo, estamos tirando a cultura de massa das massas, estamos gentrificando o que foi inventado para ser acessível a todos, transformando os quadrinhos num bizarro pão com ovo gourmet.
Mercadologicamente falando, vivemos num país capitalista, as editoras vendem seus produtos ao preço que acharem certo, compra quem quiser/puder e o mundo segue girando (se bem que nem os movimentos da Terra são mais um fato indiscutível, mas esse é outro assunto). Mas como fica o futuro de uma mídia, quando sua renovação de público praticamente se limita aos filhos dos consumidores de agora? Possivelmente, fincando estacas ainda mais profundas na política do vender pouco e caro.
Some-se a isso o alto preço dos livros (historicamente pouco acessíveis), os valores pornográficos da indústria dos games e o desaparecimento recorrente da programação infantil na TV aberta e a inevitável conclusão é que a fantasia tornou-se artigo de luxo, um biscoito fino para paladares entendidos. Às crianças não privilegiadas resta a injusta realidade.